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15.6.16

As Benevolentes

As Benevolentes
Jonathan Littell
2006 
Romance

Estive este tempo todo sem falar sobre livros porque me remeti a um grande projecto: meu pai ofereceu-me este livro da sua colecção pessoal pelo Natal, leitura que fui adiando devido ao imenso volume que contém. Afinal, são cerca de 900 páginas. 900 páginas de puro terror.

Jonathan Littell é Americano mas escreve, segundo consta, em francês. Este livro será a sua grande obra-prima, contendo um relato muito detalhado dos acontecimentos da segunda guerra mundial, como vistos por um major das SS. O livro compõe-se de várias partes nominadas após temas de peças de música erudita. Isto acaba por caracterizar perfeitamente cada uma das partes deste romance gigantesco e, assim, falarei delas separadamente.

Após uma breve introdução em que o personagem fala um pouco da sua vida actual, em que se encontra como líder de uma grande fábrica de têxteis e tudo é mais ou menos pacífico, o autor remete-nos para uma parte inicial da guerra. Assim começam as Allemandes 1 e 2. Nesta secção, o personagem inicia-se enquanto soldado e é enviado para a Polónia, onde assiste a uma série de horrores cometidos sobre o povo judeu. A partir deste momento é-nos clarificado que quase ninguém neste universo de guerra aprecia realmente matar as pessoas e apenas o faz por obrigação judicial e (quase) moral. No entanto, em todo o lado há loucos. É perdido nessa loucura que ele tenta fazer prevalecer uma opinião superior. Conhece várias pessoas, com as quais trava relações de amizade ou de competitividade, o que vem a ter as suas consequências nos capítulos seguintes. Esta secção introduz-nos a alguns conceitos relativos ao nacional-socialismo vigente na época (o tal nazismo hitleriano) e revela-nos que o ódio perante os judeus não é especificamente dirigido a este povo em particular, mas a todos aqueles que possam diminuir a "qualidade da raça". As opiniões do nazismo são plenamente justificadas através de grandes momentos de debate e discussão entre os personagens. Estes momentos estão presentes ao longo de todo o volume, sendo que o autor revela aqui um grande sentido de pesquisa bibliográfica, de forma a manter um realismo pleno e quase brutalizante. É também curioso observar, através deste livro, o quão desinformados estão os nossos fascistazinhos da época actual (por exemplo, no nacional-socialismo original a comunidade muçulmana é vista como uma espécie de colaborador). Também é introduzida uma das facetas do personagem que virá a ter grandes repercussões no seu futuro: a sua homossexualidade.

Seguidamente, após diversos desentendimentos, Aue (o personagem principal) é enviado para a frente de Estalinegrado. Aqui chamamos de Courante. Aqui, sofre horrores físicos e emocionais que seriam indescritíveis se não estivessem explicados ao longo da narrativa. Existe um elemento constante, que é o mal-estar físico relacionado com problemas gastro-intestinais. Isto fez-me alguma impressão, porque não é de todo agradável ler descrições detalhadas de diarreia e vómito, mas sugeriu-me o meu pai a ideia de que este elemento seja uma personificação, ou objectivização, do mal-estar emocional do personagem. Nesta secção, Aue foi muito mau para mim e pegou-me uma infecção no ouvido: a descrição foi tão horrenda para mim que, pelos vistos, me contaminou e fiquei com dores no mesmo ouvido durante algum tempo. Existem várias descrições de sonho que, progressivamente, se acabam por misturar com a realidade. Assim, ao longo de grande parte da narrativa, deixamos de saber o que é realmente verdadeiro e o que foi apenas mais um dos pesadelos de Aue.

Após ficar ferido em combate por sua própria irresponsabilidade, é tempo de descanso e de Sarabanda. Aqui, encontramos um elemento novo: a irmã gémea de Aue. Ele nutre por esta um sentimento quase patológico de admiração e obsessão sexual, que acabará por levá-lo a uma quase loucura no futuro. Nesta secção, tratamos dos aspectos burocráticos da guerra. Repare-se também que existe uma analogia ao regime soviético, sendo que muitos dos personagens mais extremistas admiram Estaline enquanto líder e gostariam que ele se remetesse para o nacional-socialismo alemão ao invés do socialismo russo: quase como se ambos fossem versões diferentes da mesma coisa (se calhar...?)

Regressamos aos terrores e ao pesadelo constante em Minuet (em Rondós). Desta vez assistimos à parte mais famosa do extermínio judeu durante este regime: os campos de concentração. Apesar de o personagem não visitar o mais famoso dos tempos de hoje, ele relata com muito detalhe a vida nestes lugares, tanto para os residentes como para o corpo policial. Fala da selecção das pessoas e do porquê: estes nacionais-socialistas procuram, por um lado, destruir todos os judeus que possam perturbar a sua pureza de linhagem mas, por outro lado, necessitam de uma força de trabalho constante e saudável que lhes possa construir as armas que necessitam para combater na frente russa. Assim, são eliminados todos aqueles que não podem trabalhar. Isto é, quem pensa que os campos de concentração foram sobretudo difíceis para as crianças, como tantos dos nossos filmes romantizam, pode ficar informado que crianças era coisa que não havia. Eram logo eliminadas, assim como mulheres grávidas (imagem que muito impressionou o nosso Aue), idosos, doentes e todos aqueles que aparentassem ser moderadamente fracos. Ora, apesa de haver esta selecção as condições seriam tão atrozes que nenhuma destas pessoas ficava habilitada para trabalhar após poucas semanas. Aqui está a ironia da coisa, que Aue se esforça ao longo do capítulo para reduzir, encontrando obstáculos na corrupção da sua própria estirpe.

Depois de um momento de doença, Aue refugia-se na abandonada casa da irmã, na Pomerânia, onde se entrega ao Air, num processo de autodescoberta física em que ele expande os horizontes das suas fantasias sexuais solitárias. Acaba por ser uma secção interessante, não tanto pelas descrições horrivelmente detalhadas dos seus actos masturbatórios, mas pelas discussões imaginárias que ele tem com uma série de pessoas, nomeadamente a irmã. Entretanto, havia ocorrido um crime na casa da sua mãe e existe agora um sentimento constante de paranóia perante a perspectiva de ser acusado desse acto.

Finalmente, em Giga, assistimos à destruição final de Berlim e do ideal nacional-socialista. É-nos também explicada a horrível forma como Aue escapa para França e a razão pela qual ele agora tem uma boa vida.

O livro é uma sucessão de imagens grotescas, horrivelmente irónicas. Há sempre um sentimento de terror, de pesadelo, que chegou a transmitir-se aos meus próprios sonhos (o que foi bem chato). Tudo isto pontuado por momentos de grande discussão filosófica acerca das origens deste massacre. É toda uma nova perspectiva sobre a guerra, perfeitamente enquadrada dentro dos acontecimentos reais, que não romantiza, não embeleza, apenas relata com toda a brutalidade o que é o terror de viver isto, quer se esteja do lado dos bons ou do lado dos maus. "As Benevolentes" são apenas referidas na última frase e são, realmente, a figura mitológica apropriada para esta ocasião.

Um livro que não me deu qualquer prazer na leitura, mas que não posso deixar de recomendar. Simplesmente, demasiado bom.

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